sábado, novembro 22, 2014

A morte e o luto na psicanálise

A psicanalista Maria Rita Kehl analisa o clássico Luto e Melancolia, em tradução de Marilene Carone, que está sendo relançado pela Cosac Naify.

Luto e Melancolia é o último da série de textos resultantes do grande esforço teórico que Freud batizou de metapsicologia. Desde que estreou com A Interpretação dos Sonhos, em 1900, Freud já mostrava empenho em compreender as expressões patológicas ou normais da alma humana com base na inter-relação entre os três planos – tópico, dinâmico e econômico.
Mas foi entre 1914 e 1915 que ele produziu a série de ensaios de metapsicologia, que começam na Introdução ao Narcisismo e se estendem até Luto e Melancolia, passando pela investigação das pulsões, da natureza do recalque e do funcionamento do sistema inconsciente.
Embora a psicanálise não tenha sido construída – e nem poderia – em uma linha evolutiva sem desvios, o leitor da obra freudiana há de perceber o percurso conceitual que ali se desenha. A aposta iluminista que orientou a invenção da psicanálise como método investigativo e a consequente descoberta do inconsciente e suas diversas formações, patológicas (angústias, inibições, sintomas) ou cotidianas (sonhos, chistes, poesia) fez com que Freud prestasse conta a seus leitores a cada mudança ou avanço teórico empreendido.
Isso possibilita que o leigo ou o estreante compreenda, com um pouco de esforço e paciência, alguns textos lidos ao acaso, fora da ordem cronológica em que foram produzidos. É possível tirar algum proveito, por exemplo, da leitura do difícil e ousado Além do Princípio do Prazer, de 1920, sem ter sido iniciado a partir do livro inaugural de 1900. É possível entender em que consiste o complexo de Édipo a partir dos textos dos anos 1910, sem ter lido os Três Ensaios para uma Teoria Sexual, de 1905.
Em uma leitura menos rigorosa, é possível acompanhar os relatos clínicos de Freud sem ter lido os textos que estabelecem os alicerces teóricos da recém-fundada psicanálise. O fato é que o entendimento do projeto freudiano se aprofunda e se amplia na medida em que se acompanha, mais ou menos pela ordem, um conjunto de ensaios nos quais Freud está empenhado em resolver um problema específico. No presente caso: a investigação da psicose batizada por Kräepelin em 1883 de “maníaco-depressiva”, que Freud trouxe para o campo da psicanálise no presente.
Luto e Melancolia, não teria sido possível antes do desenvolvimento das idéias expostas emIntrodução ao Narcisismo e As Pulsões e Seus Destinos, ambos de 1914. Ou se não tivesse o apoio conceitual estabelecido em O Recalcamento O Inconsciente, ambos de 1915.
Na direção regressiva, hoje nos parece óbvio que a teoria da melancolia tenha conduzido a textos tais como Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte, do mesmo ano, uma investigação filosófico-científica sobre a desilusão (melancólica) que a Primeira Guerra trouxe para os habitantes das supostas civilizações evoluídas do Ocidente.
Estamos diante de um percurso de pensamento que hoje nos parece ter sido destinado a desaguar, em 1920, na importante revisão da teoria pulsional expressa em Além do Princípio do Prazer, em que a antiga oposição entre pulsões do ego e pulsões sexuais foi substituída pelo conflito – mas também por variadas soluções combinatórias – entre pulsão de vida e pulsão de morte.
A partir desse ponto, ficou impossível refletir sobre a psicopatologia sem levar em consideração o trabalho da pulsão de morte. Que por sua vez já estava em gestação desde a teoria da melancolia.
Entre as ideias que prepararam o terreno para Luto e Melancolia vale destacar, de Introdução ao Narcisismo, a importante constatação de que o autoerotismo precede o narcisismo. Nos primeiros meses de vida, o bebê ainda não constituiu “uma unidade primitiva comparável ao eu”. Seu corpo é sede de experiências fragmentadas de prazer, que aos poucos organizam os investimentos pulsionais e permitem aquilo que, no texto seguinte a este, Freud haverá de estabelecer como a possibilidade de reversão da pulsão, desde o objeto-alvo (não encontrado, ou não satisfatório), de volta ao eu. O autoerotismo participa dos modos de satisfação da libido do eu.
É claro que a criança não é autossuficiente no desenvolvimento do autoerotismo. A mãe ou um substituto seu representam para a criança este Outro superpoderoso que também haverá de comparecer, de forma negativa, na origem das melancolias. É ela quem erotiza com seus cuidados (a começar pela amamentação) o corpo do infans e colabora para estabelecer os caminhos de satisfação pulsional que o bebê saberá, faut de mieux, percorrer por conta própria ao sugar o polegar, balançar-se no berço ou, meses mais tarde, tocar seus genitais.
Mas o autoerotismo ainda não é igual ao narcisismo do eu: um novo ato psíquico deve ocorrer para que a tal unidade primitiva se forme e para que a criança se identifique com ela, ou seja, com seu próprio eu. Além da satisfação libidinal autoerótica, o infans haverá de identificar-se com o objeto privilegiado que ele representa frente ao amor e ao desejo de seus pais.
A partir desse ponto, está estabelecida a base para a formação da unidade do ego freudiano, fonte de investimento libidinal (a partir de 1915 diremos: pulsional) e dessa forma particular de amor a que chamamos narcisista. Nesse ponto da constituição psíquica Freud haverá de encontrar, em 1915, a relação narcísica com um objeto frustrante que marca a estrutura da melancolia.
O narcisismo primário forma a base para o narcisismo secundário, vulgarmente conhecido como a dose essencial de estima que o ego dedica a si mesmo. O qual, por sua vez, é tributário das desilusões sofridas pelos pais em relação às suas próprias fantasias narcisistas: os filhos representam uma renovação das velhas esperanças infantis dos adultos, contrariadas pela realidade da vida.
Outra parte do narcisismo secundário resulta de suas eventuais experiências exitosas – tanto no sentido dos investimentos em direção aos ideais do ego quanto nas buscas de satisfação da libido objetal. O maior ou menor êxito na constituição do narcisismo secundário varia, a depender de que os investimentos objetais estejam ou não em sintonia com os ideais do ego – caso contrário, estes ficarão sujeitos ao recalque.
A vicissitude bastante comum de se desejar o que não se deve, o que não se pode, o que não contribui para a valorização do ego contribui decisivamente para a diminuição da autoestima dos neuróticos, quando não conduz a inibições que impedem os caminhos de desenvolvimento do ego, ou a soluções de compromisso sintomáticas.
As reflexões de Freud sobre o narcisismo produziram uma importante mudança de enfoque na teoria. O papel dos obstáculos que o princípio de realidade impõe à plena satisfação dos impulsos do bebê passou a uma posição secundária frente à questão da perda do narcisismo primário. A paixão por “voltar a ser seu próprio ideal mais uma vez” será mais decisiva para a escolha de neurose que conclui a travessia edípica do que a frustração do impulso sexual propriamente dito, em relação à mãe. Vale observar também que essa inflexão teórica será um dos pontos decisivos para o “retorno a Freud” efetuado por Lacan.
Na obra freudiana, a retomada da ênfase sobre a questão do narcisismo amadurece  exatamente em Luto e Melancolia. A falha na constituição do narcisismo primário estabelece uma distinção entre a “neurose narcísica” da melancolia e o sofrimento que caracteriza o trabalho de luto.
O trabalho psíquico empreendido pelo enlutado, embora empobreça o ego e torne o sujeito inapetente para quaisquer outros investimentos libidinais, pode ser considerado como um trabalho da ordem da saúde psíquica. É um trabalho de paulatino desligamento da libido em relação ao objeto de prazer e satisfação narcísica que o ego perdeu, por morte ou abandono.
Ter sido arrancado de uma porção de coisas sem sair do lugar: eis uma descrição precisa e pungente do estado psíquico do enlutado. A perda de um ser amado não é apenas a perda do objeto, é também a perda do lugar que o sobrevivente ocupava junto ao morto. (…) Mas é normal, escreve Freud, que o apego do enlutado ao seu morto diminua aos poucos, e que a “psicose alucinatória de desejo” – um conceito estabelecido no texto imediatamente anterior ao nosso, o Complemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos, também de 1915 – ceda lugar à aceitação da realidade.
Embora a libido tenha enorme resistência em abandonar posições prazerosas já experimentadas, aos poucos a ausência do objeto impõe o doloroso desligamento, até que o ego se veja “novamente livre e desinibido”, pronto para novos investimentos. Pronto para voltar a viver.
Freud revela nesse texto uma disposição investigativa inesgotável. Nada, para ele, é tomado como natural, nada escapa ao seu questionamento. Mesmo que o trabalho de luto seja uma função psíquica normal, não patológica; mesmo que a dor causada pela perda de um objeto de amor nos pareça totalmente compreensível, Freud não se dá por satisfeito. O aspecto doloroso do luto só será esclarecido, escreve ele, quando a dor for explicada do ponto de vista econômico, tal como o autor já havia esboçado em A Repressão.
Mais difícil é entender o que ocorre com os melancólicos, estes que desconhecem tanto a natureza do objeto perdido como a origem da perda. Mesmo quando sabem nomear quem perderam, não sabem dizer o que foi perdido junto com o objeto. A observação clínica nos sugere que uma posição da libido nos primórdios da vida psíquica tenha sido abandonada, ou perdida.
Freud estranha também que falte ao melancólico o sentimento de vergonha comum aos arrependidos, aos que de fato se consideram indignos e sem valor. Se estes se escondem e tentam fazer calar sua culpa e seu crime, os melancólicos parecem sentir necessidade de alardear suas baixezas e sua indignidade.
Debatem-se em autoacusações delirantes sem saber que os insultos furiosos voltados contra si próprios em verdade correspondem às características de alguma outra pessoa – daí a força da expressão encontrada pela tradutora: “para eles, queixar-se é dar queixa”.
Se “a sombra do objeto” encobre o ego, isso indica a base narcísica do investimento (forte fixação; baixa resistência) e a identificação precoce do ego com o objeto perdido. A superposição desses dois aspectos traz à luz todos os tormentos característicos da ambivalência amorosa, que nos melancólicos é experimentada com grande intensidade.
Mas a identificação narcísica ainda não é suficiente para explicar o furor das autoacusações melancólicas que podem atingir o paroxismo quando o sujeito, ao tentar destruir o objeto odiado de sua identificação inconsciente, pode chegar a destruir a própria vida.
O “autotormento indubitavelmente deleitável da melancolia” aponta para uma modalidade sádica de satisfação pulsional, cuja natureza exige uma explicação do ponto de vista tópico. A satisfação sádica em insultar e humilhar o ego provém de uma de suas funções específicas, a consciência moral ou (como ficará estabelecido depois de 1920, em O Ego e o Id) o superego. Ora: o sadismo do superego não caracteriza exclusivamente a melancolia. Ele comparece também, por exemplo, nas manifestações de masoquismo moral dos neuróticos obsessivos. Se na melancolia ele se manifesta com muito mais crueldade, isso se deve também à desfusão entre Eros e Tânatos, que libera o gozo da pulsão de morte do limite imposto pelos investimentos parciais efetuados pelas pulsões de vida. Mas esse ponto só poderia ser explicado depois de Além do Princípio do Prazer, escrito também em 1920.
Luto e MelancoliaSigmund Freud
Trad.: Marilene Carone
Cosac Naify
144 páginas
R$ 39,90

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